quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Um pouco dos quandos, dos comos, dos sonhos


Quando o mundo nasceu, durante a invenção do tempo, decidiu que giraria todo dia em torno de si mesmo, na tentativa eterna de se refrescar, pois fora condenado, por cláusula carimbada, a girar também ao redor do sol, e isso o fazia xingar constantemente os deuses. Assim que, como sempre nos parece, nascia culpado pela própria e única existência – e pior, já julgado e condenado. Dentro desse mundo, que, apesar do astronauta e do horóscopo, se limita à Terra, fez nascer-se ainda a vida, como forma de planta, de bicho e depois de gente.
E esse é um texto sobre a vida no estado de gente.
As pessoas na natureza, nos abrigos, nas aldeias, nas comunidades, nas nações, nas guerras que trouxeram as armas, nas cidades e fora delas, abarco tudo isso na escrita porque hoje trato aqui do sonho humano. Do sopro inundado de certezas que é o estar, e do espirro doente das dúvidas que é o ser. É a vida que sempre nos afora o corpo, pois não nos cabe, por isso nos salta em canto, em tosse, em sexo, em família, em extinto, a vida nos vaza para fora, porque não a suportamos nem por um segundo. Não posso mais explicar.
Em algum momento da história, nós olhamos para o céu, inventamos o fogo e as coisas que matam, começamos a conversar e aos poucos fomos nos parecendo. Mas em toda a história, sem poder precisar desde quando, nós sonhamos. Muitas vezes durante a vida, inúmeras durante a noite e infinitas durante o sonho.
A vida se nos impôs. Pelos sonhos foi que optamos, assim como a terra optou por girar, mesmo quando lhe imposta o sol.


domingo, 23 de dezembro de 2012

Vida esquecida

     Os olhos desgovernados pelas paredes do quarto, pelos móveis, pelos sapatos, quase crentes da felicidade que lhe mostravam sobre a vida, o homem os esfregava seguidamente para não lacrimejarem e embaçarem a nova história que contava sua memória. Ele recém acordado sentia impossivelmente as lembranças da felicidade, porque as possuía, que as avivava, que nunca, quando vivesse aqueles tempos, poderia estar feliz, demais para ser. No entanto, seus olhos batidos tudo o que viam era ela e não outra coisa.
     Antes desse momento, ele insistia em dizer que não comprassem os amigos as comidas daquele país desconhecido, porque trariam problemas certamente. - Ao sabor!, contestavam os outros. - Ao banheiro, isso sim!, ele resistia. E resistia porque se lembrava de outras experiências, e se contava todo dia das suas lembranças, pensando viver das memórias que há tão pouco as tinha. Seus amigos seguiam saboreando, em espasmos de gula como se durassem anos, os mesmos anos em que o homem teve seus espasmos de vida, mas que agora encobertos, contidos. Sua memória aos poucos contou sua vida enquanto a matava.
     Nas memórias do homem, o eu das lembranças devorava o eu dos sentidos. Suas histórias sobre o passado destruíam suas experiências, e as ressignificava outra vez, e outra
. As suas recordações lhe pareciam mais com sua vida do que a própria. E ao passar do tempo as lembranças eram a única coisa que lhe satisfazia, e que fazia. A experiência do homem se tornou apenas lembrar, de viver, de comer de ouvir. Contar-se a história de seu passado o impedia de tê-lo vivido.      Por isso mantinha agora os olhos incrédulos de poder enxergar novamente, por alguma razão. E tateou como nunca as paredes, e admirou os móveis, e calçou seus sapatos de acordar. De repente, foi esquecendo as recordações, apagando as memórias, já não lembrava de nada. Por isso foi estando feliz, - Como nunca estive!, imaginou assim, porque não sabia mais de seu passado. 

Era o homem moderno. Estava cego.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Conversa

Os homens falam das mulheres
mulheres, das dores
crianças, das outras crianças pequenas
você, de você
e seus problemas
artistas, das cores e suéteres
cambojanos, das setas nas cabeças
jornais, de seus autores
idosos, das doenças que têm,
antigos amores
os homens mais fortes, das suas fraquezas
crianças das ruas, de comida
das dores que têm, mulheres e autores
os jornais, dos problemas da vida
as cabeças das pessoas, do que farão
as respostas, do sim e do não
os artistas de dinheiro, do dinheiro,
das pessoas da avenida, os jornais
das respostas, as escolhas
das pequenas lembranças, a vida
de idosos e amores, falamos eu e você
que me ouve, ou que me lê,
quando a conversa é interrompida.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Os cães

Um cão só late na noite escura e preta
porque ouviu outro cão, que late sempre
que outros cães latem, quando é noite
escura e preta, como o cão que só late
e anuncia o verso curto de cão
e reverencia o certo vulto do cão.

Nem mesmo sempre que estive a ouvir
valeu entender como quando vi,
por ser homem de vista e de ouvido,
e nunca de olfato ou conversa, e portanto
tranquilo para reconhecer minhas pernas,
minhas mãos e minhas mesmas costas,
nas marcas que fiz nas carnes do corpo,
as marcas que fiz das carnes no corpo.

Distante, as pessoas e os homens do almoço,
gritando seu dia, seu trabalho sob prédios,
nos falta entender dos remédios das dores
nos falta ostentar os excessos das cores.

Foi isso tudo que vi nas janelas e assentos que visitei
até hoje.
até hoje,

Os cães alardavam que eu voltava,
as moças gritavam que eu voltava,
as câmeras registravam que eu,
mãos me tocavam, choros choravam,
dentes faltavam pra rir que eu voltava,
os boatos confirmavam que eu,
os papéis escreviam, as cortinas abriam,
as cadeiras sentavam que eu voltava,
só meus olhos não criam que eu
voltava, tão outro, para casa.