Escrito em 13/02/2012 e publicado agora.
Nunca escrevera. Não tinha inspiração, dizia. Nem para os relatórios, que eram todos adiados. Nada redigido sequer à empregada. Dos poucos amigos, que o viam depois do período de reclusão, sobraram dois. Um era o apresentador da TV. E o pombo. À época do escrito, abril, não recebia ninguém senão o pombo, logo, contabilizava-se apenas um. Mais tarde e o pombo morreu, assim como escrevera pela primeira vez mais cedo naquele dia.
Nunca escrevera. Não tinha inspiração, dizia. Nem para os relatórios, que eram todos adiados. Nada redigido sequer à empregada. Dos poucos amigos, que o viam depois do período de reclusão, sobraram dois. Um era o apresentador da TV. E o pombo. À época do escrito, abril, não recebia ninguém senão o pombo, logo, contabilizava-se apenas um. Mais tarde e o pombo morreu, assim como escrevera pela primeira vez mais cedo naquele dia.
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TEMPO O sisudo semblante ia da loja de ração ao parque, do banco na sombra, pela rua ensolarada, ao quarto outra vez dormir. Assim dois anos parados, dois anos em que descobriu a memória, tão clara, dois anos viveu aposentado para encontrar algo de fundamental. Foi preciso não fazer nada para entender como funcionava a rotina, o marasmo, o comum, o diário que se torna tudo. Esteve trancado em casa por quanto tempo o pediu sua disposição, por meses necessários para desvendar a literatura, por algum tempo importante então. Estocou alimentos suficientes para durar e para o pombo visitá-lo trazendo notícias. Por quase toda vida vagou, contudo, vagar deu-lhe pernas longas para pular todo o pré-requisito da escrita. E eliminou vidas de leitura das façanhas humanas simplesmente empunhando o lápis. Nesse momento estava pronto.
FAÇANHA Era pelas tardes frescas do bairro, a chuva do dia anterior não deixava rastros, nem nas folhas encobertas, mesmo assim o sol não aquecia. Voltado ao caderninho vermelho escreveu. Seu lampejo vanguardista resultou na obra máxima e única de sua vida, a epopeia futurista que também, e principalmente, era um ensaio social. De nome simples inspirado na própria história, mas de recheio pomposo até quando foi possível pelas mãos doídas. Letras pequenas espremidas pelos cantos, frente e verso, todas as páginas e sem rasura alguma. Repousou sobre a mesa o livro, as mãos e antebraços, um pouco do cansaço. Sob a mesa deixou os pés esticados, as sandálias vazias e as mãos sobre os joelhos. Sempre soube que compreendia tudo que ninguém imaginava, sempre coube em seu espírito a enorme certeza de um dia concretizar a sapiência. Depois do feito desapareceu a sua inteira harmonia e denovo sentia-se vagar.
OBRA Relato do que aconteceria. Teses que se provavam apenas ao se ler. Resumos filosóficos de escolas arbitrárias. Gêneros fundidos, funções embaralhadas; era o épico-lirismo informante, subjetivo e convincente. Qualquer página, excerto, parágrafo resumia a obra inteira. A obra inteira resumia o resto da história do mundo: tudo escrito era falso porque no momento de gravá-la no papel nada já havia ocorrido, entretanto, a obra só tomava sentido quando as pessoas iam tomando consciência da rotina, do marasmo, do comum e da obra. E o inacreditável, para quem conheceu a obra, não foi o não primeiro entendimento, mas que tudo logo se fazia claro. Quem chegou de carro onde estava, se lê-se "carro não existe", voltava correndo para dar tempo de chegar. Assim, a obra só adiquiria sentido quando lida, logo, não havia modo dela equivocar-se.
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Aquilo que no começo foi mentira, fez-se logo verdadeiro. Aquele mundo confundiu-se com a obra porque a obra fez-se para substituir o mundo. Daquele autor ninguém mais sabe porque ele não assinou ao fim.