quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

    Escrito em 13/02/2012 e publicado agora.    

 Nunca escrevera. Não tinha inspiração, dizia. Nem para os relatórios, que eram todos adiados. Nada redigido sequer à empregada. Dos poucos amigos, que o viam depois do período de reclusão, sobraram dois. Um era o apresentador da TV. E o pombo. À época do escrito, abril, não recebia ninguém senão o pombo, logo, contabilizava-se apenas um. Mais tarde e o pombo morreu, assim como escrevera pela primeira vez mais cedo naquele dia. 


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TEMPO                   O sisudo semblante ia da loja de ração ao parque, do banco na sombra, pela rua ensolarada, ao quarto outra vez dormir. Assim dois anos parados, dois anos em que descobriu a memória, tão clara, dois anos viveu aposentado para encontrar algo de fundamental. Foi preciso não fazer nada para entender como funcionava a rotina, o marasmo, o comum, o diário que se torna tudo. Esteve trancado em casa por quanto tempo o pediu sua disposição, por meses necessários para desvendar a literatura, por algum tempo importante então. Estocou alimentos suficientes para durar e para o pombo visitá-lo trazendo notícias. Por quase toda vida vagou, contudo, vagar deu-lhe pernas longas para pular todo o pré-requisito da escrita. E eliminou vidas de leitura das façanhas humanas simplesmente empunhando o lápis. Nesse momento estava pronto.

FAÇANHA                Era pelas tardes frescas do bairro, a chuva do dia anterior não deixava rastros, nem nas folhas encobertas, mesmo assim o sol não aquecia. Voltado ao caderninho vermelho escreveu. Seu lampejo vanguardista resultou na obra máxima e única de sua vida, a epopeia futurista que também, e principalmente, era um ensaio social. De nome simples inspirado na própria história, mas de recheio pomposo até quando foi possível pelas mãos doídas. Letras pequenas espremidas pelos cantos, frente e verso, todas as páginas e sem rasura alguma. Repousou sobre a mesa o livro, as mãos e antebraços, um pouco do cansaço. Sob a mesa deixou os pés esticados, as sandálias vazias e as mãos sobre os joelhos. Sempre soube que compreendia tudo que ninguém imaginava, sempre coube em seu espírito a enorme certeza de um dia concretizar a sapiência. Depois do feito desapareceu a sua inteira harmonia e denovo sentia-se vagar.
OBRA                       Relato do que aconteceria. Teses que se provavam apenas ao se ler. Resumos filosóficos de escolas arbitrárias. Gêneros fundidos, funções embaralhadas; era o épico-lirismo informante, subjetivo e convincente. Qualquer página, excerto, parágrafo resumia a obra inteira. A obra inteira resumia o resto da história do mundo: tudo escrito era falso porque no momento de gravá-la no papel nada já havia ocorrido, entretanto, a obra só tomava sentido quando as pessoas iam tomando consciência da rotina, do marasmo, do comum e da obra. E o inacreditável, para quem conheceu a obra, não foi o não primeiro entendimento, mas que tudo logo se fazia claro. Quem chegou de carro onde estava, se lê-se "carro não existe", voltava correndo para dar tempo de chegar. Assim, a obra só adiquiria sentido quando lida, logo, não havia modo dela equivocar-se.

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     Aquilo que no começo foi mentira, fez-se logo verdadeiro. Aquele mundo confundiu-se com a obra porque a obra fez-se para substituir o mundo. Daquele autor ninguém mais sabe porque ele não assinou ao fim.
Escrito em 07/09/2013 - publicado agora

Você tá aí, não está? Eu sei que sim
anotando tudo que faço
como ando e a que horas passo
anota tudo sobre mim

É que talvez não saiba querido poeta
mas já estive em seu lugar
até que me impuseram uma meta
e hoje faço algo que querem sempre pra já

Muito já me perdi na tentativa de capturar
entender ou conflitar as sutilezas de mim
quando não o era
quer dizer quando apenas um dia o seria
e como poeta escritor e fingidor me sentia
observando a terra
fazia meu escrito muito mais você do que a mim

Mas esse tal do horário que me surge na testa
a cada rua que atravesso são duas que ele encontra
queria poder voltar a conta
e sentar como faz tu agora no fim do dia com a hora que te resta
escrever sobre eu sobre mim
sobre um homem que já se sente homem
porque não tem mais tempo de amar a nada e se engana com tudo

É de mim que zomba, não é? De quem escreve a rir?
como se você fosse maior
e eu menor ou mais desengonçado
sim sim não diga que não
o passo apertado me pertence mas não é forçado
tente ver um pouco além do escárnio pronto em si só
no homem que jura querer sorrir

Pense assim, um pouco mais, veja bem, mas veja